O dom de ser
casmurro, II
Sangria desatada
Em abrindo a boca me chovem conceitos aos
borbotões, dizia uma personagem de Antônio José da Silva, o Judeu,
orgulhoso de seus perdigotos literários. Taí, gostei da brincadeira da
pincelada anterior. Não me posso conter. Pulsa-me a veia poética,
de bissexto, em sangria desatada.
Um soneto, solitário prazer (mesmo que seja de um
bento seminarista), é pouco. Sofra lá o meu leitor mais dois. Afinal,
diz um ditado francês, il n’y a deux sans trois, quer dizer, não
há dois sem três. Ainda mais quando essas aritméticas geram um adjuvante
terceiro, seja o filho, seja o comboço ou a comborça. Num caso ou
noutro, o amoroso triângulo. Trindade santíssima, diria o superlativo
José Dias.
Quem (cabeça aritmética de Holmes ou Escobar) leu o
D. Casmurro, sabe bem o sabor de minhas insinuações. Talvez
porque, gaguinho, nosso causídico casmurro não sugeriria tanto quanto
eu, posto aqui a papaguear.
Eu e os meus Papagaios,
Frida Kahlo, 1941
Dá cá o pé, meu louro! Esta foi a invocação que fiz
à Musa dos sonetos estrambóticos: Frida Kahlo a lembrar-me Capitu? Logo
ela me socorreu. Não me lembra se piscando seus olhos de cigana,
buena dicha da poesia oblíqua e dissimulada.
Mas chega de prolegômenos e vamos às vias do fato.
Empreste-me a gentil leitora os seus ouvidos e olhos...
(meu Deus, como essa moça me lembra a Fernanda
Torres)... para que eu, dublê do assassino do pai de Hamlet, destile o
veneno de minha musa a um tempo canora e belicosa. Corram os sonetos à
conta de memórias póstumas de nosso causídico D. Casmurro.
Doente de amor, 1916, George Grosz
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Iago do ser Otelo
Mirei teus olhos oblíquos, dissimulados,
quebra-mar de ressaca, tarô de cigana,
e me revi como outro Otelo, retratado
em viva fotografia que a ninguém engana.
No retrato, são do outro os traços, perfeitos.
Do amigo Escobar nosso filho tem tudo:
a cara, a voz, os pés, quem não nota os trejeitos?
As evidências (meu Iago) tudo entrudo?
Não me venham que tudo vejo por meu prisma.
Ciumento, doentio, sou a pobre talha,
debuxo incolor dum inglês que me criou.
O nome Otelo não recebi na crisma.
Minha santa mãe assim não me batizou.
Talvez Iago seja o nome que me calha
nesse soneto estrambótico, alexandrino,
em que, pai do homem, sou Bentinho menino.
Que te perde, Capitu, mas ganha a batalha.
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Espelho, espelho meu
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!”
mudei eu ou mudaram os natais?
Pois hoje sinto que só por loucura
poderia exclamar besteiras tais.
Ainda bem me saíste natimorto
ou serias mais um filho natural.
Gorado, poupas-me o desconforto
de não reconhecer-me em corpo tal.
Ainda bem, meu incompleto soneto,
que te perdeste bem no espaço entre
as duas pontas da vida por atar.
Não foram teus quartetos e tercetos
maldito fruto de comborço ventre:
poupas-me de rever-te no Escobar.
(Aqui, à beira de tua sepultura,
despetalo, natimorto soneto,
esta “flor do céu”, “flor cândida e pura”.)
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